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ria a el rei D. Afonso V, que o tirou de classe humilde; e o próprio rei o confirma na carta datada de 6 de julho de 1454, pela qual o nomeou guarda das escrituras do seu tombo (1), pelas palavras: «polla muita criaçom que em elle temos fecto.>>

É sabido que nos séculos xv e xvi os moços fidalgos recebiam instrução literária no paço rial, onde lhe era ensinada a leitura, escrita, gramática portuguesa, e provavelmente tambêm da lingua latina. Em uma memória sôbre as mercês, que fez el rei D. Afonso V, escrita por D. Vasco de Ataíde, Prior do Crato (2), se diz que o mesmo rei «criou filhos de muy grandes fidalguos em muy grande numero e com muyto amor e afeiçam... de si, asi em sua mesa como em sua camera.»

É pois de presumir, que Gomes Eannes de Zurara, sendo ainda mancebo, fosse admitido no paço rial para ajudar o serviço da guarda e conservação da livraria e cartório; e que el rei D. Afonso V, sendo informado da boa disposição e natural inclinação dêle para os estudos, o mandasse ensinar como os filhos dos fidalgos, que eram instruídos no paço.

Alêm das notícias precedentes nada mais se sabe àcêrca da vida de Gomes Eannes de Zurara até ao ano de 1450; alguns biógrafos afirmam que êle despendeu os primeiros anos da sua mocidade no exercício das armas (3); mas é mais provavel que êle fizesse serviço na livraria e cartório do paço rial durante o reinado del rei D. Duarte e começo do reinado del rei D. Afonso V, como ajudante de Fernão Lopes, guarda mór da Torre do tombo e cronista, a cujo cargo estava tambêm a livraria rial (4).

Erudição literária. — As obras compostas por Gomes Eannes de Zurara revelam pelas suas citações, que o seu autor possuia grande erudição literária, pouco comum entre os homens que no

(1) Doc. v.

(2) Provas da história genealógica da Casa real Portuguesa, tomo 11, p. 22.

(3) José Correia da Serra, C. I. H. P., 11, p. 208.

(4) E. Prestage, The life and writings of Azurara, p. v.

seu tempo viviam em Portugal, e demonstram que os letrados do seu país acompanhavam de perto o renascimento do estudo dos escritores clássicos, iniciado na Itália e seguido na França e Hespanha. Os conhecimentos literários de Gomes Eannes de Zurara não eram provavelmente profundos, mas mostram-se muito extensos; é de presumir que fossem adquiridos no convivio com os mestres dos infantes, filhos del rei D. Duarte, e pelo estudo dos livros que havia na livraria rial, que teve a seu cargo; estes livros eram na maior parte em latim, em que haviam sido escritos ou traduzidos, por ser então a lingua universalmente usada pelos letrados de toda a Europa. Enfim o próprio Gomes Eannes de Zurara diz que «ca eu que esta estoria escpreui, lij muy gram parte das cronicas e liuros estoreaaes» (1).

É muito extensa a lista das obras e dos escritores citados Gomes Eannes de Zurara; são:

por

Da Biblia: o Pentateuco, Paralipomenos, Esdras e Macabeus; os livros de Salomão e dos Profetas; os Evangelhos, as Epistolas canónicas; e o livro apócrifo Pastor de Hermas.

Dos antigos Santos Padres: S. João Crisóstomo, S. Gregório, S. Jerónimo e S. Agostinho.

Dos Padres da idade média: S. Bernardo, S. Tomás de Aquino, Alberto o Magno.

Dos escritores gregos: Homero, Hesiodo, Herodoto, Aristoteles, que muitas vezes designa sómente pelo título de filósofo, Josepho e Ptolomeu.

Dos escritores romanos: Cesar, Tito Livio, Marco Tullio Cicero, Ovidio, Salustio, Valerio Maximo, Plinio, Lucano, os dois Senecas, o trágico.e o filósofo, e Vegecio.

Dos escritores da idade média: Paulo Orosio, Isidoro de Sevilha, Lucas de Tuy, Rodrigo de Toledo, Pedro d'Ailly (Petrus de Alliaco ou Petrus Lombardus), Egidio, Frei Gil de Roma, João Duns Scoto.

(1) Crónica da tomada de Cepta, cap. xxxix.

C

Dos escritores italianos: Dante, Bocacio e Marco Polo. Dos escritores arábicos: o astrónomo Alfragan e Avicena. Vê-se enfim das citações feitas por Gomes Eannes de Zurara, que êle era lido nas crónicas e histórias da Hispanha e da França, e nos romances de cavalaria, tanto em voga no seu tempo em todas as cortes da Europa.

Noções de cosmografia. - Gomes Eannes de Zurara possuia conhecimentos bastante completos dos sistêmas geográficos antigos, sôbre tudo pelo que diz respeito ao continente de Africa. Tem notícias dos estados da costa do norte de África desde o Egito até à Barbaria; do reino de Etiópia sob o Egito; da ilha de Meroe; do curso do rio Nilo; e cita as tentativas feitas na antiguidade para descobrir as suas fontes, e as conjecturas apresentadas para explicar as suas crescentes (1).

Noções de astrologia. — Gomes Eannes de Zurara, em tres passagens da Crónica da tomada de Cepta (cap. xlv, lxviii e lxxxvii), concluida em 1450, dá a posição (longitude) do sol e da lua em dois dias do ano de 1415; assim:

1415, julho, 18; falecimento da rainha D. Felipa: longitude do sol, dois graus do signo de Leão, (4X 30° + 2° = 122°) [cap. xlv];

1415, agosto, 21; tomada da cidade de Ceuta : longitude do sol, seis graus do signo de Virgo (5 × 30° +6° 156°) [cap. lxviii e lxxxvii]; longitude da lua, um grau do signo dos Gemeos (2× ×30° +1°=51°) [cap. lxxxvii].

Seria bem interessante saber de que modo Gomes Eannes de Zurara obteve êstes dados; na falta de provas directas, recorreremos a conjecturas. Segundo todas as probabilidades Gomes Eannes de Zurara deduziu as mencionadas posições do sol e da lua das taboas astronómicas, que Isaac ibn Sid, de Toledo, redi

(1) Veja-se Crónica da conquista de Guiné, cap. II, IV, VIII, LIX, LXI, LXII e LXXVII.

giu em 1252 por ordem de D. Afonso X, rei de Castela; ou ainda em das taboas astronómicas, que Jacob Carsono (al-Carsi) calculou por ordem de D. Pedro IV, rei de Aragão (1336 a 1386) (1). Umas e outras eram usadas pelos astrólogos da península hispanica nos séculos XIII, XIV e xv; mas inclinamo-nos a acreditar que Gomes Eannes de Zurara fez uso das Taboas Alfonsinas, por isso que as eras mencionadas por êle nos cap. lxxxvii e cv da Crónica da tomada de Cepta são as mesmas que são dadas no começo das Taboas Alfonsinas e pela mesma ordem; sómente é de notar que a era de Diocleciano, que começou no ano de 284 de J. C., mencionada nas Taboas Alfonsinas, foi substituída, nos dois capítulos indicados da Crónica da tomada de Cepta, pela era de Alimus ou Acimus (Anianus ?), que começou no ano de 444 de J. C. Nenhuma das taboas astronómicas, acima indicadas, é mencionada no catálogo dos livros do uso del rei D. Duarte; comtudo êste rei parece ter conhecido as Taboas Alfonsinas, porque no Leal Conselheiro (cap. xxvii) se exprime assim: «E aquel honrado rei Dom Afonso estrollogo quantas multidões fez de leituras.>> Deve observar-se que as Taboas Alfonsinas não dão imediatamente a posição (longitude) do sol ou da lua em um determinado dia; mas é necessário efectuar alguns calculos; do que resulta que Gomes Eannes de Zurara tinha noções bastante extensas de cosmografia, e sabia efectuar os calculos para deduzir dos dados das taboas a longitude do sol, da lua e dos planetas em um determinado dia.

Gomes Eannes de Zurara não conhecia as taboas astronómicas por mera curiosidade, nem sabia o seu uso sómente por gosto especulativo; mas cultivava a astrologia, que tanto crédito gosava no seu tempo e ainda depois. Mateus de Pisano informa, que Zurara era notavel astrólogo (nobilis astrologus) (2). É

(1) Gomes Eannes de Zurara não deduziu os dados astronómicos das taboas do Almanach perpetuum de Abraham Zacuto, porque esta obra foi composta em Salamanca pelos anos de 1473 a 1478, e impressa pela primeira vez em Leiria em 1496, em latim.

(2) De bello Septensi, C. I. H. P., 1, p. 26 e 27.

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de presumir que os seus conhecimentos de astrologia tenham sido adquiridos pelo estudo da famosa obra de Claudio Ptolomeu, Opus quadripartitum de astrorum judiciis (1). Da predilecção que Gomes Eannes de Zurara tinha pela astrologia, se encontram evidentes testemunhos nas suas obras: 1.° o horoscópio do infante D. Henrique, explicado na Crónica da conquista de Guiné (cap. vn); 2.o a predição da perduravel memória da empreza dirigida contra a cidade de Ceuta, que faz dizer a Frei João Xira no sermão que pregou em Lagos, conforme se lê na Crónica da tomada de Cepta (cap. liii); 3.o os razoamentos, que atribue a Azmede ben Filha, almocadem mayor de Tunes, predizendo a destruição da terra de África (Barbaria), expostos na Crónica da tomada de Cepta (cap. lviii) (2). E não se deve estranhar o interesse de Gomes Eannes de Zurara pela astrologia, porque é bem sabido que esta sciência gosava de grande crédito nas cortes de Castela, de Aragão e de Portugal, nos séculos XIII, xiv e xv, posto que alguns homens esclarecidos não acreditavam nas influências siderais, como mostrou el rei D. Duarte, que na hora, em que havia de ser levantado como rei, sendo avisado por mestre Guedelha (Guedalya), judeu, seu físico e grande astrólogo, de que era conveniente sobrestar no mesmo auto, em razão de não serem favoraveis as constelações dominantes naquela hora, o mesmo rei respondeu, que tal não faria, para não parecer que nele havia falta de fé e de esperança em Deus (3).

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Crónica da tomada de Cepta. El rei D. Afonso V, ao tempo em que começou a governar o reino (1448), como soube que as memórias dos feitos del rei D. João I, seu avô, não tinham

(1) Visconde de Santarem, introdução da Crónica do descobrimento e conquista de Guiné, p. ix e x; E. Prestage, The life and writings of Azurara, p. xlvii e xlviii.

(2) Outras alusões relativas à crença nas influências siderais se encontram nas obras de Gomes Eannes de Zurara, a saber: Crónica da tomada de Cepta, cap. xxxv, xxxvii e lviiii; Crónica da conquista de Guiné, cap. xxvш; e Crónica de D. Duarte de Menezes, cap. xxxiv.

(3) Rui de Pina, Crónica del rei D. Duarte, cap. п1.

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